sábado, 27 de julho de 2013

OPINIÃO: A fragilidade política do discurso da classe médica ou: declare guerra a quem finge te amar

por Nadjara Régis*

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Declare guerra a quem finge te amar: da composição de Guto Goffi, Ezequiel Neves e Frejat que bem pode ser o fundo musical da mais insidiosa declaração de Florisvaldo Bittencourt, vereador na Câmara Municipal de Vitória da Conquista.  Além de Frejat, Florisvaldo ainda me brinda com uma oportunidade de lembrar Multidão. É que, como se premeditando inquietar as pessoas acostumadas com a vida sem metáforas, Florisvaldo protagoniza o que Michael Hardt e Antonio Negri chamam de “discurso metafórico da guerra”: ele postou em seu facebook a seguinte declaração: “todos que estão participando desta paralisação deveriam ser presos por tentativa de assassinato”. Referia-se aos médicos que escolheram a paralisação das atividades como forma de demonstrar a discordância da categoria com o Programa Mais Médico e, no seu bojo, a realidade do SUS.

Ao tratarem de como a política passa a ser um mero instrumento da guerra na transição do século XX para o XXI, Negri e Hardt elucidam que a retórica de guerra há muito é usada para se referir a atividades muito diferentes de guerra propriamente dita. Citam esporte, política e comércio como os ambientes que mais empregam o discurso metafórico de guerra, espaços nos quais em vez de inimigos há competidores. E, finalmente – e é esta a parte que melhor explica aquela lancinante declaração pública –, eles destacam que o discurso metafórico de guerra pode ser invocado como estratégia para conseguir a mobilização de forças sociais em torno de um objetivo de união que é típico de um esforço de guerra.

Agora me diga o leitor: é possível discutir os rumos do SUS sem fazer disso um campo virtual de batalha? É realmente possível enfrentar com metáforas sutis (assemelhadas àquelas que Chico, Caetano e tantos outros artistas produziram numa energia criativa alucinante para não serem censurados em dias de ditatura) a sociedade do espetáculo, dos discípulos de Ratinho? Conseguiria um discurso elegante-palaciano persuadir as pessoas que estão imersas na rotina família-trabalho, sob o aperto de seu orçamento doméstico ou, ao contrário, no deleite do consumo hedonista, à mobilização social ou, menos ainda, a apenas discutirem o assunto?

O sucesso ou a derrota do SUS envolve interesses sobre os quais poucas pessoas dominam em conhecimento. Um grupo privilegiado de políticos, profissionais, empresários e professores universitários é que conhecem como, de fato, funciona o negócio da saúde privada em detrimento da saúde pública. Um grupo também pequeníssimo saberá descrever como se dá a corrupção a partir de horas trabalhadas, de compra de insumos, de registro de procedimentos médicos, de aquisição de medicamentos no negócio da saúde. Um grupo menor ainda influencia os rumos do negócio da saúde no país porque a única realidade que a sociedade como um todo consegue apreender é a mais patente, ululante, anunciada sem esforço pela mídia dominante: filas, falta de atendimento, falta de equipamentos, falta de profissionais, e, isto, claro, apenas no SUS. Ninguém ousa tratar dos descaminhos da saúde privada.

Assim, a metáfora do vereador Florisvaldo é um tanque de guerra. Porque a sociedade, as pessoas, não precisam de entidades de profissionais que cumpram exclusivamente a clássica defesa da reserva do mercado de trabalho. Não contribui – como nunca contribuiu – para o desenvolvimento da nação as lutas de classe de interesses imediatistas que não estabelecem na linguagem e na ação uma interpretação lúcida da realidade, focada no interesse social mais abrangente.

A gente sabe que o trabalhador perde um dia de trabalho para ser atendido porque o horário marcado no agendamento de uma consulta não é respeitado. A gente sabe o transtorno que é uma receita ilegível, enquanto pode ser digitalizada. A gente sabe que tem a Lei dos Genéricos, mas que as receitas são insistentemente prescritas com o nome comercial do medicamento, o que beneficia fornecedores. A gente sabe que há consulta de 15min e que tem paciente que sai sem sequer obter um olhar – olho no olho – do profissional. Estas práticas simples só dependem do compromisso do profissional com o paciente, seja do SUS, seja do plano de saúde.

Entanto, jamais vi as entidades de profissionais realizarem uma grande campanha de mobilização nacional para aproximar médicos e pacientes, discutir direitos e deveres recíprocos, pautar a responsabilidade social do médico na relação diária com seu paciente e, portanto, menos ainda, aproximar médicos do debate sobre o SUS. São 25 anos de democracia e as entidades profissionais dos médicos nunca demonstraram um ranking de profissionais denunciados – quiçá punidos! – por mau atendimento, nunca realizaram uma campanha que estimulasse a população a reconhecer um mau profissional e como dele se proteger.

As entidades “de classe”, todas elas, precisam participar dos debates com maior compromisso com a educação dos cidadãos, lembrando, aqui, as reflexões de BAUMAN sobre ser a educação uma responsabilidade de todas as entidades sociais. Para o desenvolvimento daquilo que faz a cultura de um país favorecer as transformações econômicas almejadas, nós definitivamente não precisamos de entidade de classe que defenda apenas os profissionais, assim como não precisamos do Estado para defender apenas o interesse estatal. O que precisamos é de entidades de classe que defendam a atividade profissional na relação com o paciente, com o cidadão, assim como se quer que o Estado entenda o interesse público a partir do cidadão…

“Ser de classe” pode não coadunar com o aprofundamento da qualidade de vida das pessoas e para o aprimoramento da cultura política do país nos novos tempos modernos. As entidades “de classe” têm que aprimorar sua intervenção política, serem menos classistas e mais sociedade, deixarem de fingir amor levantando bandeiras de defesa do SUS como guarda-chuva de suas defesas de proteção de interesses imediatos e de mercado.
É preciso ampliar o percentual de médicos por habitante, é preciso interiorizar as Faculdades de Medicina, democratizar o acesso, formar profissionais vocacionados para a Atenção Básica da Saúde, ofertar cursos de medicina que tenham o SUS como referência de formação. Como negar a falta de médicos no país se a Frente Nacional dos Prefeitos colocou esta demanda como pauta de mobilização nacional?

Não por acaso o Prefeito Guilherme também lançou seu míssil metafórico: “Mande procurar a secretaria de saúde aqui presente, se aparecer um médico para trabalhar na atenção básica, nós contrataremos ainda hoje”.  Os salários no setor público não são dignos? Por que no Brasil há mais advogados do que médicos? Então vamos formar mais profissionais, ampliar a oferta! Se para dar ritmo a consecução desta demanda for preciso criar a tensão social necessária com a ocupação do mercado de trabalho por médicos estrangeiros, façamos! Por que o medo de uma experiência imediata que pode ser submetida a uma avaliação de resultados em curto prazo? É melhor trocar a experiência do médico estrangeiro em minha casa pela defesa programática de mais recursos para o SUS?

Eu nem quero aqui trazer à discussão que a má repartição tributária e a inflexibilidade da Lei de Responsabilidade Fiscal frente a política de ampliação de serviços municipais são um obstáculo para a contratação de médicos pelos Municípios, que faz uma disputa desigual do setor público com o privado e da capital com o interior.

Os novos tempos da modernidade ensejam um salto de qualidade no conteúdo das reivindicações democráticas, um esforço interpretativo maior capaz de compreender os interesses “de classe” perante a complexidade do universo minucioso de direitos a serem realizados para segmentos mais amplos da sociedade. Sindicatos e conselhos profissionais devem assumir a responsabilidade de serem lembrados tanto mais pelo universo maior (pacientes) quanto pelos profissionais (universo menor), para fazerem-se na memória das grandes conquistas destinadas a toda a população.

É por isso que a paralisação dos médicos que teve como estopim o Programa Mais Médico, embora revestidas de bandeiras programáticas, pode ter legitimidade formal porque não ofende, na interpretação imediata, a lei. Mas não vislumbro em seu favor a grande solidariedade popular.

*Nadjara Régis é advogada

FONTE: Blog do Fábio Sena

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