por Nadjara Régis
Na foto abaixo está uma das criaturas de J. Murilo, em sua derradeira Exposição “J. Murilo pinta Guimarães Rosa”, no Centro de Cultura Camilo de Jesus Lima, abrindo este ano. Olhando a pintura, Filipe Sena Régis, 02 anos, alvo de outros registros fotográficos ao lado de outras tantas obras ali expostas. Após aquele dia, Filipe não se cansa de pedir, numa expressão que mais fielmente posso transcrever assim: “Vamo Cento Cutuia!”. Daquela visita à exposição de José Murilo Batista de Oliveira para cá, o Centro de Cultura Camilo de Jesus Lima ingressou no roteiro de passeios de meu filho, pela mais veemente insistência dele.
Poucos meses e a morte daquele artista queridíssimo de Vitória da Conquista, que teve sua obra repercutida em exposições nacionais, com alcance, inclusive, ainda em vida, de premiações e menções honrosas. O velório deu-se no saguão daquele local que ostentava uma seleção de suas melhores pinturas em homenagem à obra de Guimarães Rosa. A par da urna funerária, apenas umas garrafas térmicas armazenando o catingueiro cafezinho e o chá. Ir àquele velório, naquele lugar, era como ver o criador verter-se em criatura, emoldurando-se em meio às suas obras em sua própria exposição, toda ela, de repente, “in memorian”. Até ali, para cada admirador em luto, nada mais que a translúcida normalidade, com a realização de seu direito ao encontro final.
A estória conta que a Coordenadora do Centro de Cultura Camilo de Jesus Lima foi afastada de suas funções porque permitiu o velório do artista plástico J. Murilo no saguão do Centro de Cultura, infringindo, conforme entendem seus superiores, a norma disciplinar emitida numa Instrução Normativa, pela qual é proibido o uso das instalações dos Centros de Cultura para eventos particulares, como casamentos, aniversários, velórios e atividades políticas.
Agindo aparentemente sob a égide de seu “insensato coração”, sobretudo porque J. Murilo teria desejado, em leito de morte, ter seu velório junto as suas obras em exposição no Centro de Cultura, será mesmo que a referida norma disciplinar realiza-se no contexto de nosso sistema jurídico atingindo situações como a cessão de um espaço público ao velório de um artista plástico que compõe pacificamente a produção e a memória cultural local, regional e nacional?
A lei ao pé da letra não é direito; e o Direito Administrativo não pode mais servir-se de uma rigidez hierárquica e de estrita legalidade incapazes de realizar, na aplicação da norma ao caso concreto, o interesse da coletividade. O servidor público burocrático (de livre nomeação ou concursado), que se contenta na subsunção do fato a norma, não tem cabimento nas perspectivas de um Estado eficiente, destinado a atingir o âmago do Direito, com a apreensão da razoabilidade e da proporcionalidade em suas decisões de interesse público.
Filipe, de dois anos, na Exposição “J. Murilo pinta Guimarães Rosa”
Onofre Alves Batista Junior, em sua pioneira obra O Princípio constitucional da Eficiência Administrativa, é incisivo ao dizer que ”uma atuação estritamente conforme o princípio da legalidade deve visar resultados positivos para a coletividade, proporcionando um atendimento otimizado, tempestivo e eficaz das necessidades coletivas”. Também é dele o seguinte entendimento “Em verdade, o modelo burocrático de administração pública reforçou a crença de que o ótimo apenas se verifica por meio do estrito cumprimento da lei. Enfim, se os administrados atuam da forma determinada pela lei, a Administração Pública pode considerar-se boa. A realidade é que o Estado Democrático de Direito (eficiente) exige mais; pede a eficiência real e não formal; pede resultados concretos; clama por igualdade material”. Afirma ainda, dentre tantas outras elaborações, que “este apego ao formal acabou por fazer dominar a cultura do “não”, do receio pela quebra de qualquer regra regulamentar, ou mesmo dos procedimentos cravados em portarias, circulares ou resoluções, que essa profusão de normas, na verdade, poucos conhecem”.
É, realmente, muito contestável o afastamento da servidora ainda que de livre nomeação. Configura-se, a mim, nada mais, do que a visão burocrática da Administração Pública em curso, atuando insólita, a revelia do interesse coletivo. Os “superiores hierárquicos”, ao utilizarem-se do método de interpretação mais arcaico ao direito administrativo contemporâneo, simplesmente subsumindo o fato a norma disciplinar, ferem a ponderação a ser alcançada com o princípio da legalidade e o princípio da eficiência administrativa, ambos esculpidos no artigo 37 da Constituição Federal.
Em que pese não ter realizado por escrito a fundamentação de seu ato que autorizou o velório do artista J. Murilo no Centro de Cultura, a Coordenadora Maris Stella Schiavo caminhou na construção da Administração Pública eficiente. É razoável que o velório de um artista plástico de forte presença no imaginário cultural local e regional seja revestido do caráter de acesso ao público, caso contrário, seria lícito aos familiares proibir o acesso de seus admiradores a um velório realizado em um espaço privado.
Certamente, por isso, como muito bem elencou Leu Couto em artigo ao Blog do Fabio Sena, outros artistas tenham seu corpo velado em espaços públicos (Chico Anysio foi velado no Teatro Municipal do Rio de Janeiro; Sérgio Britto foi velado na Assembléia Legislativa do Rio (Alerj); o ator, roteirista, dramaturgo e diretor teatral Jota Pingo foi velado no Teatro Galpão do Espaço Cultural, em Brasília; o corpo da atriz pernambucana Diva Pacheco foi velado nas instalações do Teatro Nova Jerusalém, em Fazenda Nova; o corpo do ator Raul Cortez foi velado no hall de entrada do Teatro Municipal de São Paulo; o corpo de Maurício de Oliveira foi velado no Teatro Carlos Gomes, e, inclusive, o velório do radialista Miguel Cortes foi no Centro de Cultura Camilo de Jesus Lima assim como o do cantor e compositor Dão Barros, nome artístico de João Libarino Barros) e o corpo de Oscar Niemeyer, velado em Brasília, no Palácio do Planalto. Aqui, também acresço ao elenco os velórios de Emílio Santiago, realizado na Câmara Municipal do Rio de Janeiro e o da apresentadora e cantora Hebe Camargo, que foi velada na sede do governo de São Paulo.
Ademais, a simples cessão do espaço sem gastos públicos extraordinários a rotina de manutenção do local faz com que o interesse coletivo seja realizado sem prejuízos aos cofres públicos.
Eu diria mesmo que a servidora está sendo alvo de ofensa a sua imagem, com probabilidade positiva de dano moral, pois que seu afastamento abrupto sob a fundamentação de mau uso do patrimônio público macula sua história de vida profissional ao marcar-lhe no rol de servidores que não condizem com a boa administração da coisa pública.
A essa altura, a postura tão agressiva do governo do Estado, por meio de sua Secretaria de Cultura, faz com que lhe seja subtraído o elevado apreço alcançado com a última Exposição das obras de J. Murilo. Uma insensatez de dimensão moral inconfundível. Afinal, também é de nossa cultura popular não refutar a vontade de um morto, em especial quando nenhum prejuízo tem sua realização.
FONTE: Blog do Fábio Sena

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